De Sinop para o mundo, a história do araçari Tuc-tuc

 No ano de 1987 minha família mudou-se para o município de Sinop, no interior do Mato Grosso. Viemos com a esperança de encontrarmos uma vida melhor diante das dificuldades enfrentadas naquela época… e já lá se vão 30 anos! O tempo passou e o carinho por essa cidade se solidificou em meu coração, um dos grandes sonhos que eu tinha era ver o nome dela despontando no Brasil e no mundo. Com muito trabalho e dedicação pude dar a minha pequena contribuição para que isso acontecesse, mas o fato mais notório nessa caminhada foi sem dúvida um projeto inédito que rendeu até a visita de uma agência de notícias europeia nesse município: a primeira prótese de araçari, no mundo, impressa em 3D.

Antecedentes

Em agosto de 2015 os bombeiros da cidade de Sinop, no interior de Mato Grosso, se depararam com um chamado inusitado. Uma ave muito semelhante ao tucano fora encontrada nas matas da região com o bico inferior quebrado.

Encaminhado à Associação de Reabilitação e Reintrodução de Animais Silvestres (ARRAS), o araçari pode encontrar melhores condições, mantendo-se vivo e alimentado por especialistas em animais silvestres.

Matéria em francês – ARTE TV

A notícia do animal com o bico quebrado (http://g1.globo.com/mato-grosso/noticia/2015/09/ave-com-bico-mutilado-e-abandonada-em-caixa-em-cidade-de-mato-grosso.html) foi veiculada no G1 local e abordou em seu conteúdo a possibilidade de confecção de prótese para substituir a estrutura danificada.

Coincidentemente, menos de um mês antes a nossa equipe havia criado a carapaça da jabota Freddy, utilizando a tecnologia 3D. Por conta disso, uma série de pessoas me enviaram o link e pediram se eu poderia fazer algo em relação ao araçari.

Matéria em inglês – CBS TV EUA

Contatei o bombeiro que havia descoberto o animal e ele me colocou em contato com a zootecnista Dra. Paula Andrade Moreira e a veterinária Dra. Vanessa Nachbar, ambas voluntárias nos cuidados com animais abandonados na região.

Depois de conversar com as duas, fui até o local onde estava a ave e a conheci “pessoalmente”. Descobri que o nome dele era Tuc-tuc e que, se por um lado era dócil e havia se adaptado bem a convivência com os humanos, por outro ele ainda conservava um par de bicos bem articulados que pressionavam sem piedade os incautos que tomavam-no para examinar.

Matéria em Chinês

Em um primeiro momento tentei digitalizar o bico através da técnica de fotogrametria (http://g1.globo.com/mato-grosso/noticia/2016/03/ave-abandonada-com-bico-mutilado-deve-ganhar-protese-3d-em-mt.html), mas o processo mostrou-se quase inútil frente a precisão que necessitávamos. Naquela época ainda não utilizávamos a confecção de molde odontológico. Dentista de formação. Além da dificuldade de levantar a volumetria do bico, precisaríamos viabilizar a colocação da prótese pelos especialistas de nossa equipe, mas todos se encontravam no estado de São Paulo e trazê-lo para o Mato Grosso seria uma empreitada caríssima.

Matéria em português

Os meses foram passando e a esperança se apagando, até que surgiram as discussões sobre a TecnoFASIPE, um evento de informática idealizado pela faculdade onde ministro aulas de Computação Gráfica e no qual sou um dos coordenadores. Um dos membros da equipe de próteses animais, o Dr. Paulo Miamoto foi convidado a palestrar na conferência. Imaginei que aquele poderia ser um dos passos necessários para a prótese do Tuc-tuc, posto que o Dr. Miamoto era o responsável pela réplica dos bicos, uma técnica apurada que auxiliava a digitalização dessas estruturas. Além disso ele também imprimia as próteses e a submetia a um tratamento que aumentava a resistência e as tornava mais agradáveis aos olhos.

Diante de uma possibilidade emergente, acionei os outros membros da equipe e decidi patrocinar a vinda de um deles para a cidade. Tratava-se do Dr. Sergio Camargo, respeitado Veterinário, cirurgião e especialista em bicos. Outro membro optou por vir até a cidade por conta própria, o Dr. Rodrigo Rabello, também Veterinário e cirurgião.

Matéria em Alemão – ARTE TV

Nesse ínterim, coordenei com o especialista do SEMA, Sandro Depiné, a documentação necessária para que o procedimento cirúrgico acontecesse. Também tive a honra de conhecer a Profa. Dra. Elaine Dione, Veterinária anestesista, representante do Hospital Veterinário da UFMT em Sinop.

Para fechar o processo de coordenação inicial, fechei com uma agência de notícias francesa o acompanhamento da colocação da prótese, ou seja, o evento renderia uma matéria internacional!

Processo de criação e cirurgia

Aproveitando a vinda dos franceses, optei por inserir a participação de especialistas locais no projeto de confecção do bico. Acionei dois cirurgiões dentistas conhecidos da cidade, o Dr. Paulo Bueno e o Dr. Bruno Tedeschi. Para a impressão 3D consegui o apoio de um ex-aluno chamado Cristian Saggin. Ainda consegui um patrocínio para a estada de um dos especialistas, graças a generosidade de uma empresa local, a Centauro. De grão em grão o projeto era viabilizado.

Foi uma correria insana, ao mesmo tempo que eu gravava com o pessoal, também auxiliava na coordenação do projeto. Todas as etapas foram bem sucedidas, nós conseguimos replicar a técnica de confecção de prótese aqui em Sinop, no interior do Mato Grosso, da mesma forma que o fazíamos em São Paulo.

A primeira etapa consistiu em criar uma réplica do bico. A estrutura foi imobilizada e um negativo foi gerado, sem a necessidade de sedar o animal. Esse negativo foi preenchido com gesso e depois destruído para que a réplica fosse retirada. A réplica recebeu uma série de traçados para que o algoritmo de fotogrametria a digitalizasse  com precisão.

A réplica do bico é feita em três estágios: 1) Bico completo (fechado para termos uma ideia da estrutura), 2) Bico superior ou rinoteca, 3) Bico inferior ou gnatoteca.

Isso é necessário para que alinhemos a prótese em relação ao bico com a estrutura completa. A propósito, a prótese é criada utilizando como referência um doador, nesse caso, o cadáver de um araçari de igual espécie.

A cirurgia foi realizada no dia 17 de abril de 2016, bem sucedida, permitiu que o animal já se alimentasse com naturalidade assim que se viu recuperado da anestesia.

Infelizmente, nesse mundo, nem tudo são flores. Uma arara, a Gisele, que receberia também uma prótese não resistiu a algumas complicações durante a cirurgia e foi a óbito. Fiquei muito triste naquele momento e esse sentimento foi capturado na matéria editada pelos franceses. Mesmo assim, aprendemos muito com o processo e mesmo que a ararinha tenha ido… ela com certeza ajudou muito na história da confecção de próteses veterinárias.

Repercussão e reconhecimento

O procedimento teve ampla repercussão, tanto no Mato Grosso quando internacionalmente. A matéria editada pelo repórter francês Zinedine Boudaud foi veiculada na TV aberta da França e da Alemanha. A CBS dos EUA também apresentou material, o mais curioso foi sabermos que até na China falaram do Tuc-tuc.

Matéria em francês: http://sites.arte.tv/futuremag/fr/animaux-bioniques-futuremag

Matéria em alemão:  http://sites.arte.tv/futuremag/de/bionische-tiere-futuremag

Matéria CBS TV: http://www.insideedition.com/headlines/15976-toucan-found-injured-on-roadside-gets-new-3d-printed-beak

Matéria em chinês: https://v.qq.com/x/cover/sgkr3aihie62aiz/f019597c45k.html

Matéria TV Globo MT: http://g1.globo.com/mato-grosso/mttv-2edicao/videos/t/edicoes/v/equipe-desenvolve-protese-com-impressora-3d-e-salvam-vida-de-aracari-em-sinop/4981097/

Matéria G1 MT: http://g1.globo.com/mato-grosso/noticia/2016/04/ave-abandonada-com-bico-mutilado-recebe-protese-de-impressora-3d.html

O site da Universidade de Darmstadt na Alemanha, instituição que desenvolveu o algoritmo utilizado na digitalização do bico fez um post sobre a prótese do araçari: https://www.informatik.tu-darmstadt.de/de/aktuelles/neuigkeiten/neuigkeiten/artikel/schnabel-aus-dem-3d-drucker-mit-technologie-aus-darmstadt/

Assim que os trabalho foram finalizados, soubemos de uma moção de aplauso oferecida pela Câmara de Vereadores de Sinop, projeto do vereador Fernando Brandão.

Para todos nós foi uma honra tremenda, ver Sinop despontando no mundo e levando uma boa notícia, atrelada ao avenço científico.

Agradecimentos

Ficam aqui os agradecimentos a cada um que ajudou no projeto, viabilizando-o e permitindo que mais uma vida encontrasse plenitude.

Roberto Fecchio (Veterinário, líder dos Vingadores), Profa. Dra. Elaine Venega da Conceição (Pós Doutorada em Cirurgia Veterinária com Ênfase em Anestesiologia Veterinária), Fátima Escalabrin (Psicóloga), Sandro Depiné (Sema), Anderson Eduardo Wagner (Instituto Ação Verde), Cris Cesco Diel (Bióloga, Especialista em Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável), Ailton Santiago (Parque Florestal), Profa. Dra. Paula Moreira (Zootecnista, Doutora em Ciências Biológicas na Área de Comportamento Animal), Dra. Vanessa Nachbar (Médica Veterinária), Cristhian Saggin, Dr. Everton da Rosa (Cirurgião Bucomaxilo Facial) Dr. Paulo Bueno (Cirurgião Dentista), Dr. Bruno Tedeschi (Cirurgião Dentista), Raissa A. Chagas Martins (Med. Veterinária), Dr. Luiz Fernando Bianchini Venâncio (Med. Veterinário), Patricia Ribeiro Barroso (Med. Veterinária), Dra. Raquel Giachini (Méd. Veterinária), Dr. Rodrigo da Costa (Méd. Veterinário), Lis Caroline de Quadros Moura (Zootecnista), Deivison Pinto (Diretor Presidente Fasipe), Adriano Barreto (Coordenador Curso de ADS – Fasipe), Klayton Conçalves, Cesar Rosenelli, Rodrigo da Costa, Jamerson Miléski (Repórter), Desirêe Galvão (Repórter), Andressa Godois (Repórter), Zinedine Boudaoud (Repórter), Melice Losso (Repórter), Laércio Romão (Repórter), Edneuza Trugillo e Luíza Trugillo.


2 thoughts on “De Sinop para o mundo, a história do araçari Tuc-tuc

  1. Luiz

    Tinha acompanhado a matéria e agora, estudando e pesquisando muitas coisas sobre Blender, voltei a ler sobre. Sensacional. A tecnologia utilizada para o bem. Parabéns Cícero, você é exemplo!

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