Quando a medicina veterinária e a impressão 3D se encontram

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A Equipe Brasileira de Antropologia Forense e Odontologia Legal (Ebrafol) nasceu em 2014. Composta por uma série de profissionais liberais, em sua maioria pertencentes ao campo da Odontologia, ela sempre buscou um caminho mais curto entre o know-how de seus associados e a necessidade dele por parte da população. Mesmo antes de a Ebrafol nascer, nós (eu e o Dr. Paulo Miamoto) já havíamos costurados uma série de parcerias e essas contemplariam não apenas a população humana, mas também outros animais.

No segundo semestre de 2013 conhecemos o médico veterinário Roberto Fecchio. O Dr. Fecchio já era muito conhecido por sua maestria em salvar a vida de uma série de bichinhos e trazer dignidade e plenitude para outros. Bicos reconstruídos, próteses adaptadas com perfeição, dentes implantados e tratados. E olha que estamos falando desde um pequeno roedor até um temeroso felino, fosse um porquinho-da-índia ou um leão, lá estava o Dr. Fecchio e a equipe cuidando deles e reabilitando-os.

Quando conheci pessoalmente o Dr. Fecchio em 2013. Faculdade de Odontologia da USP, São Paulo. Foto: Daniel Ludwig.
Quando conheci pessoalmente o Dr. Fecchio em 2013. Faculdade de Odontologia da USP, São Paulo. Foto: Daniel Ludwig.

Parece um pequeno período, mas de 2013 para cá muita coisa aconteceu. No quesito habilidade em computação gráfica aplicada à saúde humana e animal, nosso conhecimento deu um pulo fantástico nesse meio tempo. Desde 2013 o Dr. Fecchio nos propunha criar próteses de bicos impressas em 3D, mas naquela época não tínhamos o know-how necessário para confeccioná-lo e tampouco o equipamento para imprimí-lo.

Fred pouco antes da cirurgia, a superfície está fibrosada e muito fina, a falta do casco é um grande perigo para esses animais.
Fred pouco antes da cirurgia, a superfície está fibrosada e muito fina, a falta do casco é um grande perigo para esses animais.

Isso mudou a poucas semanas. O Dr. Paulo Miamoto adquiriu uma impressora 3D. O objetivo era explorá-la para estudos científicos e a venda de impressão para terceiros. Tudo muito novo, interessante e desconhecido.

Casco de um jabuti saudável (wireframe preto) e digitalização 3D do jabuti doente na parte interna.
Casco de um jabuti saudável (wireframe preto) e digitalização 3D do jabuti doente na parte interna.

Quando soube da impressora o Dr. Fecchio, sempre na vanguarda, propôs que participassemos de um projeto com ele (de Santos-SP) e outra equipe (de Brasília-DF). Tratava-se de um pobre jabuti, que havia sido vítima de uma queimada no serrado brasileiro. As chamas invadiram o seu casco e ele perdeu parte considerável da estrutura. Por sorte foi recolhido e chegou quase em óbito nas mãos do Dr. Rodrigo Rabello, que auxiliado pelo seu irmão o Dr. Matheus Rabello, tratou-o, curando-o de duas pneumonias e outras doenças desenvolvidas por conta de sua imunologia comprometida.

Sistema de encaixe dividido em quatro partes.
Sistema de encaixe dividido em quatro partes.

Mesmo com a saúde em dia o jabuti encontrava-se com um grande problema. Estava sem casco, pois as partes que haviam sobrado caíram e ele ficou como se fosse um ovo sem casca, contando apenas com uma fina película que por qualquer motivo poderia ser violada.

Casco digital explodido
Casco digital explodido

Foi nesse momento que o Dr. Fecchio entrou em cena, propondo a parceria e vendo-se bastante contente com a admissão de todos no projeto.

Imaginei que a reconstrução do casco poderia ser feita utilizando uma metodologia simples. Em primeiro lugar faríamos a digitalização 3D do jabuti que perdera o casco. A técnica usada chama-se fotogrametria, grosso modo, tiramos várias fotos do animal, enviamos a um algorítimo computacional e este reconstrói o volume em 3D. Depois fazemos o mesmo com um jabuti saudável. Assim, temos o volume do jabuti sem o casco e do jabuti saudável. Basta, então, proceder com um cálculo booleando e voilà! Temos uma estrutura que se encaixa ao animal doente!

Peça impressa em 3D
Peça impressa em 3D

É claro que tivemos uma série de problemas no decorrer do processo. O casco teve que ser impresso em 4 partes, pois não sabíamos de a impressora do Dr. Paulo conseguiria dar conta do serviço em tempo hábil. Por isso dividimos em várias partes, para, em caso de problemas com a impressão, poderíamos contratar empresas ou pessoas que oferecessem esse serviço. Felizmente as impressões foram bem sucedidas, mas não correram rapidamente. Foram necessários 5 dias de impressões quase ininterruptas para o casco ficar pronto. Depois isso, tivemos uma desagradável surpresa ao limpas o material de suporte criado pela impressora… nas áreas de encaixe era um suplício retirá-los. Graças ao auxílio do Dr. Paulo Esteves, um experiente cirurgião dentista, a limpeza dos suportes foi viabilizada e tudo se encaixou lindamente.

Foto pós-cirugia. A na foto em escala de cinza sou eu.
Foto pós-cirugia. A na foto em escala de cinza sou eu.

A cirurgia foi acompanhada por uma emissora de TV brasileira, a maior delas, chamada de Rede Globo. Foi um sucesso e ao final Fred (esse é o nome do jabuti), recebeu um casco novo e nem foi necessário parafusá-lo ao corpo, tamanha a precisão da digitalização por fotogrametria.

Etapas do processo de criação do bico digital e posterior cirurgia
Etapas do processo de criação do bico digital e posterior cirurgia

Nesse ínterim, outro caso que havia sido tratado pela equipe, o tucano Zeca, acabou perdendo parte considerável do seu bico “novo”, que era na verdade de um tucano morto. Prática comum na medicina veterinária. Ao ver que o tucano perdera o bico, o Dr. Fecchio nos propôs revivermos o primeiro projeto que havíamos desenvolvido em grupo, ainda no período pré-Ebrafol, ou seja, criar próteses de bico digitalizadas. Imbuídos de inspiração pela cirurgia bem-sucedida, topamos novamente a empreitada e para a nossa total alegria, eis que tudo deu certo e o Zeca já está todo feliz com o seu bico novo!

Nossa equipe se encontra muito feliz e honrada por tudo o que tem acontecido. Além do sentimento de nobreza e dever cumprido, também nos orgulhamos de tudo ter sido feito com software livre e gratuito. A fotogrametria foi realizada com o PPT-GUI, a modelagem 3D com o Blender. Os cálculos booleanos com o Cork e o fatiamento para impressão com o Slic3r.

Mal curtimos a maré de sucesso e já estamos engajados em um novo projeto. Em breve postarei mais novidades, nos vemos por aqui!

Agradecimentos

Ao Dr. Everton da Rosa, que viabilizou a minha ida à Brasília para conhecer os doutores Rabello e participar da gravação do Fantástico, o programa jornalístico dominical mais popular no Brasil. Ao Claudio Marques Sampaio (patola) por nos auxiliar com as impressões 3D. À Denise Oltramari, que nos cedeu um dos jabutis que estão sob os seus cuidados para que os fotografássemos. Ao Daniel Ludwig e Lis Caroline por nos auxiliar no processo de fotografia (fotogrametria). À Giovanna Leite Soares Miamoto, que nos auxiliou com as traduções para o inglês. A todas as equipes de reportagem documentaram esse projeto sempre respeitando os aspectos científicos e enaltecendo a importância de iniciativas como essas para o bem dos animais.


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